Quando, na minha infância, a minha mãe exercia a justiça em
processos sumários e cometia um erro judiciário, dando-me uma palmada injusta,
quando contestada porque eu não tinha feito nada, assumia aquele ar sério do
supre juiz e respondia invariavelmente que aquela palmada ficava por conta das
que não tinha levado por outras traquinices nas quais não tinha sido apanhado.
Isso significava que na justiça materna o julgamento,
condenação e pena não era apenas para o fez, mas também para o pode ter feito,
o poderia ter feito, o tinha condições para fazer e o se não fez tivesse feito.
Se dantes eram preciso provas do crime parece que agora pode-se ser condenado
pelas provas, mesmo que não tenha havido crime ou provas do crime.
Segundo esta lógica se alguém for apanhado com um canivete
suíço corre um sério risco de ser condenado a uma multiplicidade de crimes e ao
consequente cúmulo jurídico. Ter tal canivete no bolso é motivo para condenação
por homicídio na forma tentada (e se não tentou podia ter tentado), assalto à
mão armada, roubo de garrafas de vinho e mais alguns crimes menores.
Parece ser o resultado lógico da técnica do arrastão, sem em
vez de ser um crime a desencadear a investigação, esta é feita porque alguém tem
cara de ser criminoso ou porque dava jeito que o fosse organiza-se um arrastão
ao clube, à empresa ou ao gabinete do ministro. Não se procuram provas de um
crime que foi cometido, na melhor das hipóteses usa-se esse argumento para que
se recolha algo que possa servir de prova-a de um qualquer crime. Encontra-se a
suposta prova e depois a imaginação criativa do magistrado faz o resto.
Dantes o ónus da prova era da acusação e havia o pressuposto
de que havia um criem, agora a acusação pode assentar num crime imaginário e o
arguido tem de provar que não cometeu um crime produzido por um magistrado com
vocação para guionista de cinema de cordel. A partir de agora a posse do que quer
que seja utilizável ou resultado de um crime é prova desse crime, se há faca
houve homicídio, se há dinheiro houve roubo.
Depois de ter falhado o enriquecimento ilícito e de recusados
os tão elogiados métodos da justiça portuguesa, parece que há quem tenha criado
a justiça criativa, o crime imaginário passou a ser condenável. Um dia destes teremos cadeias cheias de criminosos imaginários, perigosos delinquentes condenados por não terem conseguido provar que eram inocentes nos crimes imaginários de que foram acusados. Por este andar um dia destes o Centro de Estudos Judiciários passa a funcionar numa escola de artes e o laboratório de polícia parece a oficina de um aderecista.