Nasci a 304 km da universidade mais perto, vivi numa
residência universitária dos serviços sociais da Universidade Clássica de
Lisboa e durante esse tempo contávamos os tostões para as refeições na cantina
universitária, para o passe social e para uma ou outra refeição barata ao
domingo, quando as cantinas estavam fechadas.
Conheci estudantes muito pobres vindos de aldeias remotas e
isoladas ou estudantes da Guiné Bissau vindo ao abrigo da cooperação. As
dificuldades de alguns eram mais do que muitas, os africanos passavam anos sem
irem ver as famílias, os portugueses iam a casa nas férias do Natal, da Páscoa
e no verão, as viagens eram caras, longas e cansativas.
Quase todos terminaram cursos superiores, tenho encontrado alguns por esse mundo, licenciados
em direito que foram para magistrados e ocuparam altos cargos no Estado, médicos,
engenheiros. Foram raros os casos de insucesso, da mesma forma que nunca
registei quaisquer conflitos étnicos ou raciais na Residência Universitária
Ribeiro Santos, na Av. Dos Estados Unidos da América. Aliás, o único estudante
com tiques racistas era um mulato de origem moçambicana.
Hoje vivo relativamente perto dessa residência, quase do
outro lado da estrada em relação à universidade e a poucos metros de bairros
sociais. Num bairro social conheço que seja filha de um desempregado e de uma
empregada doméstica e vá para a universidades privada de carro. Curiosamente a
universidade fica a 200 metros do meu emprego e eu venho a pé ou uso
transportes públicos.
Não critico a rapariga, até porque nos bairros sociais que
conheço, com gente de várias raças e etnias é um caso raro de alguém que tenta furar
o cerco da pobreza através de estudos universitários. A maioria das famílias
recebem mais subsídios do que eu alguma vez tive enquanto estudei, beneficiam
de casas bem melhores e mais baratas do que as das famílias dos meus colegas
de residência e andando dez minutos a pé estão na entrada de qualquer faculdade
na Cidade Universitária de Lisboa.
Talvez valesse a pena meditar sobre isto para que o debate
das questões da pobreza ou de outras a ela associada não estejam poluídas por
sentimentos, complexos e arrogâncias ideológicas, culturais ou religiosas.