quinta-feira, maio 18, 2017

Os inspetores do fisco e a democracia

Um sindicalista dos impostos fez passar a mensagem de que os inspetores do fisco se sentem intimidados por terem de justificar a motivação de uma consulta aos dados fiscais de um contribuinte. Fê-lo no parlamento, onde sugeriu que isto era uma forma de autocensura e insinuando que em Portugal se fazia o mesmo que em “certos países”, dando a entender que estava em causa a qualidade da democracia.

O sindicalista defende que um inspetor do fisco perante a constatação dos sinais de riqueza de um qualquer cidadão com que se cruze, pode aceder aos dados fiscais desse mesmo cidadão e analisar se com base nos dados disponíveis no sistema esse cidadão tem recursos que lhe permitem adquirir os bens que ostenta. Deu mesmo o exemplo de se cruzar com alguém a conduzir um “Rolls”, sinal de que o sindicalista deve frequentar muito locais luxuosos pois se o sucesso do combate à evasão fiscal dependesse do número de “Rolls” com que me cruzei na vida estaríamos todos bem tramados.

Sugere mesmo que se perdeu eficácia no combate à evasão fiscal, mandando os deputados analisar os resultados dos relatórios da AT. Acrescentou mesmo que quando entrou para os fisco, os formadores incentivaram-no a proceder dessa forma, o que é estranho por duas razões, porque a sua carreira não é da área da inspeção tributária e porque quando entrou para o fisco a informação disponível nas bases de dados era escassa.

Segundo esta lógica qualquer funcionário do fisco que visse alguém com um carro um pouco melhor ou passando férias na Manta Rota poderia ir ao sistema informático e desencadear por sua livre iniciativa uma inspeção e vasculhar a vida do cidadão. Não havendo limites para este combate à evasão fiscal o mesmo funcionário poderia verificar se a vizinha de que não gosta estaria a cumprir todas as obrigações fiscais ou eleger como alvo a ex-esposa que lhe meteu os palitos ou mesmo o vizinho que estaciona o carro no lugar privativo do serviço de finanças.

Diz o sindicalista que o fato de ter de explicar as suas iniciativas privadas em matéria de combate à evasão fiscal o funcionário sente-se intimidado e faz autocensura. Isto é, um funcionário só se sente à vontade se não tiver de justificar as suas iniciativas a ninguém, podendo inspecionar em regime de autogestão e sem que o contribuinte tenha quais quer direito, podendo a sua vida ser vasculhada por iniciativa de um poderoso inspetor sem que este tenha de deixar qualquer rasto das suas ações. 

É um conceito de democracia muito estranho onde um cidadão não tem quaisquer direitos e um inspetor não tem quaisquer deveres. O sindicalista tem um conceito um pouco enviesado do que é a democracia. Em democracia os processos são transparentes, não dependem de “observações” do comportamento dos cidadãos feitas por alguém a quem cabe vigiar o comportamento dos outros cidadãos. Quem investiga explica porque investiga, regista o que faz durante a investigação e pede a quem tem o direito de o fazer a autorização para investigar alguém. Em democracia investigar alguém é algo muito sério e não faz sentido que os inspetores do fisco não possam ser investigados quando investigam um cidadão por sua livre iniciativa, sem dar conhecimento a ninguém, sem deixar registo do que faz durante a investigação. Investigar alguém, com possibilidade de investigar toda a sua informação fiscal, que vai do “Rools” à loja onde compra papel higiénico não é bem a mesma coisa que colocar o impresso da multa no para-brisas de um carro mal-estacionado. Ainda bem que a nossa democracia não dá liberdade ilimitada a todos os nossos bondosos inspetores, seja do que for.

A deputada Mariana Mortágua, camarada do sindicalista estava embevecida enquanto este fazia considerações sobre a democracia, eu fiquei muito preocupado com o que ouvi. Se calhar estamos perante diferentes conceitos de democracia.