Enquanto as boas almas do país se vão mobilizando em nome do amor e dos superiores interesses destas crianças os jornais vão dando conta de outras situações de crianças que são embrulhadas na burocracia judicial sem que tenham direito a intervenções públicas de ex primeiras-damas. Leio no Diário de Notícias que o Tribunal de Família e Menores de Cascais decide que Martim, uma criança de dois anos e meio filho de uma mãe adolescente, deve ser urgentemente dado para adopção. Neste caso não está em causa a falta de amor, são as condições materiais que impedem que seja dado amor.
No Norte a família que acolheu a Alexandra propõe-se criar condições para que a mãe possa trabalhar em Portugal, o país que há poucos dia a expulsou. No Sul uma jovem estuda para ter um emprego enquanto o magistrado procura acelerar a adopção do filho. Onde estarão as boas almas que prometiam o céu às jovens que se decidissem pela “vida” em vez de abortar?
Não questiono nem um nem o outro caso, mas a forma como são tratados leva-me a pensar que as nossas boas almas estabelecem uma relação entre amor e capacidade económica, quem não tem recursos mesmo que tenha amor com fartura não tem condições para o dar pelo que as crianças, mesmo as que sempre foram desejadas, deverão ser entregues a famílias ou instituições onde há amor e dinheiro.
Por este andar ainda alguém se lembra de estabelecer um rendimento mínimo para dar amor, quem não atingir esse patamar perde o direito de ficar com os filhos. Curiosamente ninguém questiona o inverso propondo que famílias endinheiradas percam o direito para ter crianças por não terem amor para dar apesar de não lhes faltar o dinheiro.
As instituições estão cheias de crianças que por serem deficientes, negras ou com uns anitos a mais ninguém quer adoptar, todos sabemos que a preferência vai para os lourinhos, branquinhos e com poucos anos, são essas as crianças mais procuradas pelos que têm muito amor para dar.
Não me pronuncio sobre o caso que enche os jornais apesar de estar tentado a compreender a família que pretendia adoptar a Alexandra, mas o facto é que é o mesmo sistema judicial que devolveu a Alexandra à mãe e a expulsou para a Rússia é que agora diz que é urgente encontrar novos pais para o Martim, a mãe da Alexandra não tinha condições para estar em Portugal mas teve-as para ficar com a filha, a mãe do Martim é portuguesa mas não tem condições para dar amor ao filho. No caso da Alexandra pouco importou se a mãe dava amor à filha, da mesma forma que no caso do Martim pouco importa o amor da mãe.
Esta mistura de magistrados descuidados, de um sistema judicial que leva tanto tempo a decidir que quando chega a uma conclusão a criança já quase deixou de o ser, de jornalistas ávidos de notícias lamechas, de primeiras damas e busca de protagonismo social e de directores de instituições armados em justiceiros está a conduzir a alguma paranóia colectiva. Entretanto, as instituições estão cheias de crianças de quem ninguém quer saber.