quinta-feira, novembro 23, 2006

Para os Devidos Efeitos...


Basta ler meia dúzia de pareceres numa qualquer serviço da Administração Públicas para percebermos dos seus traços culturais, e entendermos que se passa por esse Estado fora.

Durante muitos anos tive que acabar as informações que escrevia com o tradicional “À consideração superior”, uma redundância pois qualquer informação é para apreciação de chefias sucessivas, até obter o despacho do dirigente com competência para decidir. Um dia perguntei-me “mas porquê?” e borrifei-me na frase, que ainda é usada por muito boa gente.

Mas se esta fórmula é apenas um tique da regra da subserviência existem outras que equivalem a verdadeiras manifestações de submissão canina, não é difícil encontrar expressões do tipo “Vossa Excelência melhor decidirá” ou, pior ainda, “Vossa Excelência melhor pensará”.
Também há os directores-gerais mais letrados que tudo fazem para conquistas a simpatia dos secretários de estado, como um que enchia os seus despachos com latinadas, até que o governante se confessou um admirador confesso do latim e lhe pediu que passasse a escrever os seus pareceres na língua dos antigos ocupantes romanos.

Mas voltando à subserviência esta não se limita a manifestações de obediência, não raras vezes escreve-se o que se julga ser o que o chefe quer, e quando assim não sucede o chefe que vem sugerir uma alteração para que possa concordar, são raros os casos de discordância, o chefe de divisão pensa o que julga ser o pensamento do director de serviços, este pensa o que julga ser a opinião do subdirector-geral, que, por definição não pensa tendo nele sido delegadas as competências e opiniões do director-geral, e, finalmente, o técnico escreve o que o chefe pensa. São raras as discordâncias, quando estas ocorrem devem-se mais a problemas de interpretação da opinião do superior do que a qualquer arremesso de independência intelectual.

Também há fórmulas para “passar a bola a outro”, a mais simples é a informação a dar conhecimento, se, por exemplo, um técnico sabe que uma ponte pode cair escreve uma informação a informar o chefe, por sua vez este emite um parecer, acrescentando “para conhecimento superior”, o director de serviços repete o raciocínio e emite o seu douto parecer “para conhecimento do senhor subdirector-geral”, que acrescenta “ao senhor director-geral com urgência”. Este fica condenado a um “tomei conhecimento” e se a ponte cair está feito!

Mas se o director-geral acha que há outra direcção-geral com responsabilidades na manutenção da ponte, recorre a uma das pérolas da gestão pública portuguesa, e escreve um ofício que começa com um “para os devidos efeitos”. Está-se mesmo a ver quais serão os devidos efeitos, a ponte vai ficar por reparar e o desgraçado que ficou de encontrar os devidos efeitos é que vai pagar as favas pela queda da ponte.

Em pleno século XXI uma boa parte da gestão da Administração Pública ainda assenta na cobardia e na subserviência e não há PRACE que consiga acabar com isso.