Desde em tão tudo mudou menos a arte de pesca, as traineiras têm um desenho totalmente diferente e usam tecnologias sofisticadas, os mestres andaram em escolas de pesca, a hora a que se vai para o mar e a que se pesca mudou. Dantes as traineiras poderiam percorrer a costa do Algarve em busca do peixe, hoje o preço do combustível proíbe essas "aventuras".
Na minha juventude ia para o mar ao fim do dia e o barco regressava já de manhã. A primeira vez que fui o barco pescou em frente a Punta Umbria (Huelva) e largou com um cardume tão grande de fataças (conhecidos por cabeçúdos) que a rede afundou e prendeu no hélice da traineira. Nesse dia a traineira cheou a meio da tarde, tendo sido rebocada pela chata.
A traineira chamava-se "Biscaia", o meu pai era o maquinista, o mestre de pesca era pai de um colega na escola e o armador era pai de um amigo de infância. Esta amizade ajudou-me a conhecer a lógica das organizações comunistas, militava numa coisa chamada Lutar no Mar e Lutar em Terra. Por acompanhar com o filho do armador, amigo de infância, fui acusado e "julgado" por me dar com a burguesia. Um dia conto-vos esta história melhor, um dos intervenientes era Macário Correia, um grande líder do proletariado que pouco tempo depois foi para o então PPD. Mais tarde chegou a secretário de Estado do Ambiente e acabou por ser uma anedota, foi apanhado num passeio de ciclistas envergando uma camisola da Skip, enfim, se calhar foi o detergente foi muito eficaz, em vez de branco o vermelho virou cor de laranja.
São dezoite e trinta, a traineira já saiu da doca, os homens fazem as últimas verificações à arte de pesca para se assegurar que tudo está em condições.
As argolas estão no lugar, sinal de que tudo está pronto. A arte da pesca sardinha é uma arte de cerca, o todo da rede flutua enquanto no fundo a retenida passa pelas argolas, lançada a rede a retenida será puxada fechando a rede por baixo, formando um saco fechado. É uma rede de grandes dimensões que conseguiria cercar e cobrir facilmente um quarteirão da Baixa de Lisboa.
A traineira navega em direcção à foz do Guadiana, ao fundo vê-se Ayamonte.
Enquanto uns partem, outros regressam, um arrastão espanhol com matrícula de Huelva entra no Guadiana, os barcos espanhóis estão proibidos de pescar ao fim de semana, a faina termina obrigatoriamente às 19 horas da Sexta-feira.
A traineira navega na foz do Guadiana, a sonda mostra a profundidade sendo perfeitamente identificável um cabeço de areia que quase chega à superfície. As barras são sempre um local difícil, ainda que as traineiras de hoje contem com cartas pormenorizadas que são lidas num ecrã de computador integrando o GPS, permitindo a navegação com recurso ao piloto automático. Ainda assim, na barra o mestre de leme está presente, a intervenção humana não é dispensável pois os canais das barras estão em permanente movimento.
Gaivota, uma companhia desde o primeiro ao último momento da viagem.
Ainda na barra a traineira deixa para trás o molho na foz do Guadiana, ao fundo vê-se a ponte que liga o Algarve à Andaluzia, os dois lados das minhas origens.
A espera começou, o homem da chata aguarda expectante, a qualquer momento pode ouvir o sinal sonoro com que o mestre avisa a eminência do lance bem como o momento em que a rede deve começar a ser lançada.
Temos companhia, uma traineira de Olhão que já procura por peixe há algumas horas "cola-se" sabendo que o nosso mestre de pesca, mais conhecedor destas águas o poderia levar aos cardumes. A localização de um cardume depende muito do factor sorte, mas um bom conhecimento dos fundos é importante pois não basta encontrar o peixe, é necessário que este esteja em local que envolva menos riscos, num fundo de pedra ou de ramos não se pode largar a arte, o risco de se prender ao fundo é muito grande e uma arte de pesca custa mais de vinte mil contos. Um acidente custaria uma reparação dispendiosa, a paralisação por alguns dias e o gasóleo de uma viagem.
Concentração total, há sinais de peixe, o mestre concentra-se na sonda que dá sinal da presença de peixe e no sonar circular que assinala a presença de eventuais cardumes num raio de cem metros em torno da traineira. Antigamente a localização dos cardumes era a olho, quando eu ia ao mar só havia a sonda que era menos precisa e usava papel térmico, agora os instrumentos são electrónicos, havendo mesmo o recurso a computadores que desenham o fundo, identificando as suas características, instrumento precioso pois depois de largada a rede a traineira fica entregue às correntes marítimas que podem ser muito fortes.
O dia aproxima-se do fim, o tempo está de norte permitindo ver o recorte do cerro de São Miguel, em Faro. Todavia, havia sinal de que iria mudar para levante, no rádio do barco ouviam-se conversas de barcos marroquinos, sinal de que o mar estava espelhado, uma característica do tempo de Levante que favorece a reflexão e propagação das ondas de rádio
A rede começou a ser largado, a ponta ficou presa da chata. A trainiera anda a toda a força, um dos homens grita dizendo ao mestre as argolas que vão sendo largadas, informação que ajuda a descrever o círculo.
Por agora o momento é de expectativa, o cardume assinalado na sonda era pequeno mas como a pesca tem sido fraca o mestre preferiu arriscar a procurar outra oportunidade, mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Não se sabe de que peixe se trata, nem do tamanho e com sorte até pode suceder que um segundo cardume não localizado na sonda acabe por ser apanhado pela rede. É um momento de concentração, de tensão e expectativa para todos a bordo.
O pôr-do-sol durante o lance.
Os nossos amigos de Olhão não descolam, se a nossa traineira localizou um cardume pode suceder que por perto ande outro. Tiveram azar, deram a volta à nossa rede e lá tiveram que partir, agora sem a ajuda forçada da nossa traineira, nesse dia não pescaram nada, em todo o Algarve apenas outra traineira pescou e a sardinha valeu mais do que o costume.
A tripulação de dez homens é uma equipa bem, treinada, cada pescador tem a sua função e dele depende o sucesso do lance, qualquer erro pode resultar em problemas.
Concentração no que se faz, o ambiente a bordo é habitualmente bom, mas o tempo enquanto a rede está dentro de água é crítico, não há espaço para brincadeira, a qualquer momento pode ter que se chamar a atenção para um problema e a resposta deve ser imediata. Nesta altura o mestre não sorri nem troca palavras.
Já é noite, as argolas estão recolhidas, o cerco foi concluído, a sorte está lançada, resta esperar pela recolha da rede.
Antigamente os mestres de pesca eram uns pequenos aristocratas que quase podiam pescar de fato e gravata, os pescadores eram quase escravos. Hoje há uma nova geração de mestres que arregaça as mangas, largada a rede abandonam a ponte da traineira e são os primeiros a estimular o trabalho da tripulação.
Todos trabalham arduamente, de cada um depende o sustento de todos.
Recolha da rede.
Sportinguista a bordo...
A rede está quase recolhida, sendo visível o peixe. A arte da pesca de cerco é uma arte cada vez mais em desuso e limitada ao mínimo já que usando uma malha muito pequena aprisiona todo o peixe que nela cai. Mas os tempos são outros e muitos mestres de pesca têm uma educação ambiental que não havia no passado, espécimes de espécies como golfinhos ou tratarudas são devolvidos ao mar sempre que ficam aprisionados. Mesmo assim não é possível impedir a morte de pequenos peixes de espécies que não se pretende pescar.
O homem da chata que durante todo o tempo se manteve afastado da traineira vigiando a rede aproxima-se agora do bordo, é ele que vai ajudar a recolher o peixe.
Preparam-se os contentores onde será recolhido o peixe.
Tudo a postos para começar a recolha do peixe, já se sabe o que se pescou, a quantidade e a qualidade do peixe que se pescou.
O peixe é trazido para bordo com ajuda de xalavares.
A pesca não foi muito, a sardinha era de boa qualidade para o consumo mas a mistura de cavala desvalorizou a pescaria. Ainda assim o peixe valeu bem devido à escassez, deu para pagar o gasóleo.