Um dia depois de ter sido notícia a mega operação de devassa da privacidade dos funcionários do fisco e de todos os que através do mail contactaram com eles, fossem jornalistas, namoradas, familiares ou colegas, merece alguma reflexão.
1. Sobre a actuação da IGF
A IGF previa no seu plano de actividades uma auditoria ao sistema informático e foi com base neste projecto que se diz que foi autorizada a vasculhar os mails dos funcionários. Se é duvidoso que esta devassa pode ser enquadrada naquilo a se designou por “auditoria ao sistema informático” ainda mais duvidoso é que a IGF possa fazer o que fez. Saber com quem cada um comunicou, quando e sobre o quê para identificar quem possa ter cometido um qualquer crime não é uma auditoria, é uma investigação criminal e a IGF não tem competências neste domínio, já que nos seus estatutos não possa actual como órgão de polícia criminal. Foi por isso que (como se pode ler na notícia do Público)
Quem assegura que funcionários da IGF apenas identificaram quem trocou mensagens, os remetentes e os receptores, não as tendo lido?
Estando em causa direitos constitucionais invioláveis o mínimo que se espera do Governo é que investigue se a IGF ultrapassou os limites das suas competências. Se o fez os seus responsáveis devem ser demitidos, se violaram direitos constitucionais de cidadãos devem ser levados a tribunal. A posição assumida entretanto pelo ministério é lamentável e pouco própria de uma democracia. Perante a mera suspeita de que poderão ter sido violados direitos constitucionais um governo democrático esclareceria esta questão, em vez de optar pela postura dos governos autoritários, protegendo os seus “rapazes”.
2. Sobre o âmbito da investigação
Por aquilo que foi publicado no Público soube-se que o dr. Macedo ficou incomodado por uma notícia do DN e uma figura secundária da DGCI estava muito preocupado com a imagem da instituição. A notícia do DN dava conta de que o dr. Macedo se tinha esquecido de cumprir com as suas obrigações fiscais e o director-geral queria saber quem trouxe a público que ele, enquanto cidadão, não cumpria com as obrigações que enquanto director-geral tem por competência obrigar os outros a cumprir.
A investigação não teve como objectivo identificar criminosos, visou identificar quem tornou pública a falha do director-geral. Não estava em causa a defesa do bom nome do director-geral já que depois de se saber como se actuava enquanto cidadão não faria sentido falar de bom nome.
S estavam em causa as supostas fugas de informação anteriores à denúncia do director-geral porque foram investigados todos os funcionários durante o ano seguinte sem que fosse visada qualquer infracção? Se durante esses meses não ocorreu qualquer desrespeito pelo sigilo fiscal que indiciasse incumprimento de obrigações profissionais por parte de funcionários com que base estava a sua intimidade a ser devassada por funcionários da IGF.
Por esta lógica todos os portugueses estariam permanentemente sob investigação, com os seus mais abertos e os telefones sob escuta, á que alguns irão cometer um crime idêntico ao que ocorreu no passado. Nenhum ditador conseguiu ir tão longe como foi a IGF neste caso, colocaram todos os funcionários sob suspeita por conta de um crime que poderia vir a ocorrer. Foi uma investigação preventiva em que todos os funcionários foram considerados potenciais criminosos de delito comum.
Sobre o âmbito coloca-se ainda uma segunda questão, se o dr. Macedo se queixava de fugas de informação na DGCI porque razão os funcionários da DGITA e da DGAIEC também foram investigados? Que se saiba os funcionários destas direcções-gerais não têm acesso às bases de dados onde constam a informação que deu lugar às queixas do dr. Macedo. Isto significa que os funcionários ficaram sob vigilância por outros motivos que não apenas as quebras de sigilo fiscal.
3. Sobre a identificação do ou dos autores de um blogue
Se a PJ pediu à Interpol para identificar os autores de um blogue e só perante a resposta desta polícia foram verificar se havia um crime que justificasse a intervenção daquela polícia internacional e concluíram que não havia matéria, com que objectivo tentaram a identificação?
4. Sobre a utilização pessoal dos mails do fisco
Os funcionários do fisco recebem um mail pessoal e até ao momento nunca lhes foram comunicadas quaisquer restrições à utilização desse mail. Não havendo restrições esses mails contêm mensagens que independentemente do conteúdo são pessoais e, portanto, invioláveis por parte de funcionários que não actuem com poderes de investigação criminal e devidamente autorizados por um juiz. E isso não se aplica apenas ao conteúdo das mensagens, é válido também para os “assuntos” e os interlocutores dessas mensagem.
Um inspector da IGF não tem o direito de saber com quem me correspondo ou quem se corresponde comigo, quando, a que horas e sobre que assunto, isso equivale a vigiar os meus passos, os que a IGF fez durante quase um ano em relação a todos os funcionários do fisco sem que tivesse qualquer suspeita ou prova de um deles tinha cometido o crime que pretensamente investigava.
Quando um funcionário do fisco pretende fazer uma comunicação oficial recorre ao mail institucional do seu serviço, o mal é enviado em nome do serviço de finanças, da divisão ou da direcção de serviços. Quando pretende enviar um mail pessoal usa o seu endereço pessoal e não pode passar a ser suspeito por trocar mails com alguém que trabalhe num órgão de comunicação social, a não ser que para o ministro, o dr. Macedo ou a IGF os que trabalham nestas empresas estão ao mesmo nível dos traficantes de droga.
Se o ministro, o director-geral dos Impostos ou o inspector-geral de Finanças ficam incomodados porque os funcionários enviam mensagens pessoais, então que os tenham “en su sitio” e acabem com as caixas de mail pessoais ou adoptem regulamentos devidamente aprovados por quem tem competências para isso. E depois até podem adoptar regulamentos para a utilização de todos os meios de comunicação como os telefones e os fax e, se isso não for suficiente, até poderão adoptar regras que estipulem com que pessoas os funcionários podem falar durante as horas de serviço.
Conclusão
Acontecimentos como estes só são possíveis numa democracia com trinta anos porque a Administração Pública ainda é gerida por gente pequena e ambiciosa para quem os seus próprios fins justificam os meios, não hesitando em usar os poderes do Estado para protegerem as suas carreiras, para eliminar concorrentes e para criar uma barreira de opacidade que os proteja do escrutínio público. Gente que chegou ao topo do Estado depois de anos de golpes baixos, depois de rastejarem junto de chefes, de lambem as botas aos políticos ou de aderirem à Opus Dei ou a outras seitas mais ou menos secretas.
Este processo não passou de um imenso uso e abuso dos poderes do Estado para proteger gente que ficou incomodada porque se soube que não cumpriam com as suas obrigações fiscais ou que geriam os serviços de forma menos competente. Foi uma tentativa de identificar quem os criticava para depois usarem os poderes de gestão para se poderem vingar e, desta forma, impor o medo a todos os restantes.
Nasci e cresci numa terra dominada pela PIDE pelo que este tipo de gente não é nova para mim. Mas confesso que tenho mais respeito pelos pides desse tempo do que por estes velhacos, os pides acreditavam no sistema que protegiam, os velhacos de agora não hesitam em recorrer à repressão e ao medo para protegerem os cargos que lhes dão acesso às mordomias de uma democracia cada vez mais doente, uma democracia entregue a gente pequena.
Neste caso os velhacos revelaram ser burros, bem mais burros do que os antigos agentes da PIDE. Não apanharam nada, gastaram uma imensidão de dinheiro dos contribuintes, prejudicaram a imagem do governo que os protegeu e esqueceram-se de que mais tarde ou mais cedo a sua actuação acabaria por ser tornada pública. Velhacos e ainda por cima burros, são estas ilustres personagens que gerem alguns serviços da Administração Pública de um Estado que até se rege por uma constituição exemplarmente democrática.