segunda-feira, agosto 08, 2011

Quando havia princesas no Guadiana

  
São cada vez menos os que têm memória dos tempos áureos da pesca da sardinha na costa do Algarve e, em particular, em Vila Real de Santo António, poucos serão os que têm a noção real do empobrecimento da nossa costa. Durante muito anos não vi um golfinho na praia de Monte Gordo, fui dezenas de vezes ao mar em traineiras e outras tantas em navios patrulha da Armada (era um puto e era quase uma mascote dos navios patrulhas que costumavam estar no Guadiana), palmilhei a costa desde Punta Umbria a Tavira e nunca vi um golfinho. Nos últimos anos é frequente avistá-los quase junto à praia e interpreto a aproximação dos golfinhos corvineiros à costa como um sinal evidente da escassez de cardumes de sardinha.

Quando era criança havia em Vila Real de Santo António dezenas de traineiras, e cada uma delas tinha duas enviadas, barcos de apoio que apenas tinham um porão e serviam para carregar de sardinha. A partida para o mar era um espectáculo todos os dias ao pôr-do-sol, saiam em fila indiana e quando a primeira traineira já estava no mar alto ainda haviam traineiras na doca. Em dias de muita pesca as traineiras apinhavam-se em todos os espaços disponíveis para descarregar e muitas delas só estavam livres da sua carga a horas de ir de novo para o mar.

No passado as traineiras partiam ao fim do dia e regressavam ao princípio da manhã, quando estavam carregadas, há dois anos fui para o mar, parti ao pôr-do-sol e às onze da noite estava a regressar com aquilo que terá sido uma pescaria razoável, mas no passado seria uma quantidade desprezível. Havia uma única traineira e foi preciso palmilhar muitas milhas para encontrar um pequeno cardume de sardinhas. Hoje não há uma única traineira em Vila Real de Santo António, todos os cais estão ao abandono, a antiga doca é uma ruina. As fábricas de conservas deram lugar a urbanizações de apartamentos e de décadas de esplendor pouco mais resta do que os azulejos da Capitania do Porto. Tudo o resto é ruina e, pior ainda, falta de memória.

A “Princesa do Guadiana” já deve ter sido abatida e deve estar a apodrecer num qualquer estaleiro abandonado, resta que os poucos pescadores morram para que todo um passado seja esquecido. Toda a riqueza etnográfica está perdida, as imagens são escassas, as embarcações recuperadas são escassas, a recolha de informação ficou por fazer. Restam fantasmas como o cheiro a atum que se sentia no ar quando as fábricas “metiam” atum, o barulho ruidoso do motor da “Pérola do Guadiana” quando passava no rio (os barcos reconheciam-se pelo perfil e pelo ruído do motor), as carroças puxadas a cavalo carregando os atuns enormes descarregados no cais da fábrica Angelo Parodi.

Até o património arquitectónico da época está em ruínas ou mal documentado, o edifício da Alfândega aguarda pela derrocada, a bela portaria do hospital local que tinha sido doado por Angelo Parodi foi arrasada com o velho edifício, das fábricas de conserva nada resta além do ninho de cegonhas no cimo da chaminé que insiste em erguer-se do meio das ruínas da fábrica Ramirez.

Mas que importa tudo isto, este país agora vive das escolhas para a administração da CGD da venda do BPN, das idiotices do Álvaro, do regulamento de vestuário da Cristas, do Facebook do Cavaco Silva, dos comentários do Marcelo ou dos sms da Manuela Moura Guedes.