quarta-feira, maio 20, 2009

Para que serve a Constituição?

A Constituição da República distingue claramente as matérias que devem ser aprovadas por maioria simples ou maioria qualificada, os constitucionalistas tiveram o cuidado de impedir que em matérias fundamentais bastasse uma maioria simples exigindo que os diplomas fossem aprovados por maioria qualificada. Uma maioria de dois terços significa que a aprovação tem o apoio indirecto de uma grande maioria dos portugueses.

Ao longo de três décadas a Constituição revista em várias ocasiões, algumas das revisões suscitaram mesmo grande debate pois estavam em causa questões de regime que nem sempre mereceram a concordância da generalidade das forças partidárias. Todavia, não me recordo de ter havido grande debate por alguma força política ter exigido que matérias que são votadas por maioria simples o passem a ser por uma maioria qualificada.

Cavaco Silva foi primeiro-ministro durante dez anos período durante o qual se preocupou muito pouco em saber que partidos votavam os diplomas que propunha para votação parlamentar. Durante as duas maiorias absolutas com que governou tinha mesmo algum desprezo pela actividade parlamentar e, em particular, pelos partidos da oposição. Para ele o parlamento resumia-se ao presidente do grupo parlamentar do PSD que assegurava que a maioria absoluta aprovaria rapidamente todas as suas propostas, não passava de uma mera repartição anexa à sua residência oficial. Foram raras as situações em que esteve em causa a unanimidade do voto dos deputados do seu partido, a não ser durante a primeira maioria absoluta em que era forçado a comprar o voto dos deputados do PSD-Madeira nas votações do Orçamento de Estado.

É por isso que considero estranha, absurda e mesmo abusiva, para não dizer, a não promulgação de diplomas aprovados legitimamente pela Assembleia da República com o argumento de que nalgumas matérias se deve alcançar o que ele estabelece como “um consenso interpartidário e plural”. Ao fazê-lo o Presidente está a dizer que o que está na Constituição da República não conta, o que conta é o que ele entende como consenso interpartidário e plural, o que nada significa pois não se percebe se Cavaco Silva pretende a unanimidade ou quase unanimidade ou se lhe basta a aprovação do seu próprio partido.

Não é a Cavaco Silva que cabe estabelecer se uma decisão do parlamento é válida, nem a Cavaco Silva nem à Assembleia da República pois as regras estão na Constituição e todos, incluindo o Presidente da República, devem respeitá-las. Não é este o caso e como se não bastasse Cavaco Silva inventa conceitos que não estão definidos, o Presidente da República parece achar que é a ele que cabe estabelecer o modelo de votação para aceitar as decisões do parlamento. Ninguém o questiona quem ouviu a propósito das suas decisões, como é sabido nem sequer reúne o Conselho de Estado, ao que parece para evitar que o seu amigo Dias Loureiro seja incomodado por jornalistas, mas sente-se no direito de esquecer a Constituição e definir ele próprio para cada caso que votações consideram válidas.

O mesmo homem que enquanto primeiro-ministro fez do parlamento uma mera repartição onde os seus diplomas eram aprovados sem grande debate, considera agora que esse mesmo só parlamento merece respeito se adoptar a regra da unanimidade ou, pior ainda, quando os diplomas também são aprovados pelo seu partido.

Cavaco Silva parece ter dificuldades em conviver com uma democracia em que conta é o voto da maioria, quando as decisões parlamentares não são do seu agrado manda-as de volta dando um raspanete ao parlamento e pedindo o que ele designa por “um consenso interpartidário e plural”. A lógica destes vetos é simples, ou votam as coisas como eu gosto ou eu exijo um “um consenso interpartidário e plural”. Isto é, tudo bem quanto à democracia enquanto o parlamento votar o que o Presidente aprova.

Enfim, tiques.