Talvez por isso passemos o tempo a querer mudar o primeiro-ministro ou o autarca e tratamos o Presidente da República como o último reduto da defesa da democracia, da honstidade e da competência. A mesma frase ouvida da boca de um ministro é uma baboseia, vinda do Presidente da República obriga a que o país pare para uma reflexão. Um bom exemplo foi a intervenção de Cavaco Silva a defender um desenvolvimento com base em estradinhas e carreiros, se tivesse sido o Mário Lino teria caído o Carmo e a Trindade, dita por Cavaco Silva quase obrigou o país a reequacionar o seu futuro. Só que não é bem assim, nada nos garante que um Presidente da República não possa ser incompetente, malandro, senil ou muito simplesmente esquecer as mais elementares regras da democracia para concentrar em si todos os poderes, o mundo está cheio de presidenets que nunca o deveriam ter sido e mesmo a curta história da República Portuguesa tem bons exemplos de gente que nunca deveria ter passado por Belém
Depois de uma ditadura em que a regra foi ter presidentes bananas a democracia teve a sorte de contar com grandes presidentes, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio ou Mário Soares foram bons presidentes, certamente fizeram asneiras, mereceram reparos, mas foram grandes presidentes, gente cuja dimensão esteve à altura do cargo, alguns tiveram mesmo o seu encontro com a história de Portugal. Graças a eles os portugueses sentem que em Belém está o último reduto da democracia, não questionando se quem está em Belém está à altura do cargo.
Ora, Cavaco Silva não está à altura dos seus antecessores, não tem a sua dimensão nem consegue distanciar-se dos partidos que o levaram de Boliqueime a São Bento. Cavaco sempre desejou ser Presidente da República como o puto que quer ser chefe de turma, acabou por lá chegar como segunda escolha e graças à ausência de adversário eleitoral. Não cumpriu uma única das promessas que fez, com a crise financeira teve uma excelente oportunidade de mostrar que poderia ajudar o país com os vastos conhecimentos de economia que supostamente tem, mas não disse uma palavra, não fez uma proposta, esqueceu-se do que prometeu e optou pelo silêncio na esperança de que a desgraça que se abatesse sobre o país favorecesse as suas ambições pessoais. Limitou-se a ficar em silêncio, a fazer propostas venenosas como a aposta em estradinhas salazaristas, esperou que a crise penalizasse o governo, preservou o seu estatuto de salvador da Pátria. Dos seus roteiros patéticos da exclusão restou uma associação dinamizada por empresários amigos, uma associação de quem já ninguém se lembra e que é presidida por um tal Rendeiro, o banqueiro de sucesso que levou o BPP à ruína, uma boa parte seus amigos são uma procissão de gente que enriqueceu facilmente à custa do país.
Com a crise financeira a direita sentiu ter uma oportunidade e a partir desse momento Cavaco transfigurou-se, nunca mais teve o mais pequeno gesto de solidariedade institucional, pior ainda, passou a intervir na política portuguesa com o objectivo de levar Manuela Ferreira Leite do poder. Vimos a líder do PSD antecipar as intervenções de Cavaco e vice-versa, pior ainda, soube-se pelo semanário Expresso do envolvimento dos assessores de Belém na escolha da nova líder do PSD, uma personagem fraca, de competência duvidosa, mas que tem o mérito de poder vir a transformar o cargo de primeiro-ministro no de um vereador de uma autarquia presidida por Cavaco Silva. Chegou-se ao ridículo de serem os assessores a comunicarem uma comunicação social aos jornalistas do Público e a título de segredo exclusivo.
As últimas intervenções de Cavaco Silva foram menos próprias de um Presidente da República, foi o caso da declaração de confiança na inocência de Dias Loureiro que durante meses se manteve ao abrigo da imunidade conferida pelo estatuto de conselheiro de Estado. Foi a recepção dos sindicalistas do MP dando expressão a dúvidas sobre supostas pressões de Sócrates sobre os investigadores do caso Freeport. Foi ainda o caso da intervenção sobre o caso PT/Média Capital que apenas serviu para lançar insinuações sobre o governo. Entre ser presidente de todos os portugueses e a tentação de ter todo o poder Cavaco Silva parece ter optado pela segunda.
À crise económica tem-se juntado uma crise política alimentada e mantida em fogo lento pelos gestos de Cavaco Silva, correndo-se um sério risco de uma boa parte dos portugueses não se reverem num presidente que não tem sabido ou querido comportar-se como presidente de todos os portugueses. Por isso talvez mereça a pena questionar em que circunstâncias se justifica um pedido de demissão do Presidente da República.
Cavaco teve a sorte de ser Presidente da República num dos momentos mais difíceis da história do país, sorte porque teve a oportunidade de servir o país como poucos presidentes e ficar na sua história como alguém a merecedor do tributo dos seus concidadãos. Mas optou por perseguir objectivos pessoais, se Cavaco teve a sorte de poder aproveitar-se da crise os portugueses tiveram o azar de o ter como Presidente da República.