segunda-feira, agosto 15, 2011

Comer (bem) na Praia do Cabeço

 

Painel de azulejos da Capitania do Porto de VRSA
  
A localização geográfica de Vila Real de Santo António, as influências de várias culturas que acompanharam a instalação da indústria conserveira, a elevada especialização na transformação do atum e do biqueirão, a especificidade de algumas espécies piscícolas da sua costa, a influência das tradições e produtos da Serra do Caldeirão fazem desta cidade (porque será que deixou de ser vila?) uma das terras portuguesas mais ricas em termos gastronómicos.

Infelizmente muito do saber gastronómico vai desaparecendo à medida que a pesca morre, da mesma forma que se esquece a arte de construir traineiras ou da pesca do atum, também morre a memória gastronómica. A contrariar esta tendência vão surgindo algumas iniciativas e uma delas é o restaurante “Sem Espinhas”. Foi uma iniciativa de um jovem e hoje vai em quatro restaurantes, o último dos quais na marginal de Vila Real de Santo António, uma casa que vai ter nome pois apresenta padrões de qualidade ao nível dos melhores restaurantes portugueses.


Amanhando as redes na muralha

Curiosamente o “Sem Espinhas” remete-me para as memórias de infância, raro era o dia que ao ir para a escola primária não espreitava através da rede e da vedação de bucho para a piscina na casa do Dr. Raul Folque, um médico da terra. Nessa piscina tinha miniaturas de duas traineiras da casa Folque, o “Raulito” e o “Infantes”, duas traineiras elegantes pintadas a vermelho. Nesse tempo todas as empresas conserveiras tinham várias traineiras que não pescavam necessariamente para as respectivas fábricas, como o pescado era vendido em lota a sardinha pescada por uma traineira dos Folques poderia ser comprada pela fábrica de Miguel Angelo Parodi. Estes eram dois apelidos que mostram a diversidade de origens da indústria conserveira, um com sonoridade inglesa, outro italiana, mas também houve um grego e espanhóis como o Pepe Combrera ou os Ramirez. Mais tarde sucedeu o fenómeno inverso, Vila Real de Santo António levou a indústria conserveira para outras paragens nacionais ou estrangeiras, como Marrocos.


Conquilhas apanhadas na Praia do Cabeço

As minhas memórias de infância estão povoadas de sabores que não voltei a provar, coisas que não se comem nos restaurantes ou que só mais tarde percebi farem parte do legado cultural espanhol da minha mãe. Até conservo em memória sabores que em criança detestava e que hoje gostaria de voltara comer como, por exemplo, o arroz de conquilhas que a minha mãe fazia e nunca consegui passar da segunda colherada. Lembro-me do repolho (o cozido da Serra do Caldeirão), das favas sapatadas a acompanhar o peixe frito, dos biqueirões estivados (antes de irem para as latas) acompanhados de azeite e alho, dos carapaus (que nesse tempo eram mesmo para o gato) alimados, das favas com chouriço mouro, da espinheta de atum, dos bifes de atum em molho de tomate ou dos mormes de atum assados no forno. Uma lista imensa de pratos que nos remetem para memórias dispersas.

Comer atum da fábrica no “Sem Espinhas” remete-me para os dias em que as fábricas “metiam” atum e por toas a vila se sentia o cheiro do atum cozido. Sendo filho de pescador, destino a que me escapei por mero acaso, é inevitável ter a memória repleta de imagens que inevitavelmente surgem cada vez que como um petisco no “Sem Espinhas”. Até o cozinheiro me remete para a infância, era no talho da tia, a Dona Romanita, que se compravam os escassos bifes que nesse tempo se podia comprar e a minha mãe era vizinha do negócio.


Antiga vivenda da família Folque em VRSA

Desde que o Fred (Frederico Folque) abriu o “Sem Espinhas” a Praia do Cabeço deixou de significar apenas praia, a hora de almoço ganhou outra importância. No principio a coisa andou aos trambulhões, levou algum tempo a atingir o padrão de qualidade que apresenta e de ano para ano é melhor. Passada a fase da juventude hoje a qualidade é cada vez maior, os profissionalismo do pessoal é bem superior ao dos primeiros tempos, a rapidez do serviço deixa atrás muitos restaurantes de Lisboa com muitos menos clientes.


Camaleão na Praia do Cabeço
 
Muito antes do "Sem Espeinhas" ali ficava o bar do alemão, um misto de pub e mar de praia dos tempos em que os homens do regime construiram a RETUR. Nesse tempo a base aérea de Beja estava em plena actividade e os militares alemães faziam os cento e vinte quilómetros e iam à praia nestas bandas, depois da vaga dos ingleses dos anos sessenta esta costa passou a ser frequentada pelos alemães, hoje partiram e no seu lugar estão os endinheirados espanhóis que detestam as praiado do outro lado do Guadiana. Hoje o Sem Espinhas é uma pequena empresa com quatro restaurantes (Praia do Cabeço, Vila Real de Santo António e Manta Rota) e emprega mais de cem pessoas.


Praia do Cabeço
 
Mas se aparecer pela Praia do Cabeço não se esqueça de olhar a natureza à sua volta, a dois quilómetros, no Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António pode ver milhares de flamingos (é um espectáculo ver um bando de flamingo as sobevoar VRS durante a noite) e uma das mais importantes concentrações de alfaiates, pra além de muitas outras aves aquáticas. Mesmo junto à praia há um pequeno lago já observei diversas variedade de patos e o raro caião, no pinhal fronteiro são frequentes os papa-figos, o chapim-real, o capim-de-crista, o chapim-real, o bico-de-lacre e algumas outras espécies. Os concelhos de Castro Marim e Vila Real de Santo António são um dos paraísos ornitolóicos do país e só isso seria suficiente para atrair muitos turistas se neste país se pensasse um pouco mais.