É estranho ser de uma terra que sentimos como nossa mas onde temos escassos laços familiares, perdemos de vista muitos dos amigos de infância e com o passar de décadas deixamos de reconhecer muita gente e nem sabemos quem ainda pertence ao mundo dos vivos. Temos uma memória que parou no tempo, não acompanhámos o envelhecimento dos rotos, desconhecemos a dinâmica das famílias, quase nem reparámos nas mudanças no tecido urbano. O emigrante típico, que não é o meu caso, acompanha o jornal da terra, regressa para rever as caras, a família vai dando conta do que sucede.
Saio manhã cedo e deambulo por uma vila quase adormecida num domingo e as memórias vão-se juntando como um livro de páginas soltas que se multiplicam de forma desordenada, sem coerência, sem enredo, sem ordem temporal. Passo pelo velho apeadeiro abandonado, recordo-me dos amortecedores do fim da linha que já lá não estão, os carris devem ter sido vendido a um qualquer sucateiro, vêm-me à memória imagens difusas de uma velha máquina a vapor, recordo-me do pescador trucidado no cruzamento, das velhas automotoras que traziam e levavam os meus colegas de aldeias como o Rio Seco ou a Nora.
São memórias auditivas, visuais e até olfactivas, junto ao cais vem-me à memória o intenso cheiro a palha queimada do gigantesco incêndio que queimou uma quantidade brutal de fardos de que se acumulavam no porto para ser embarcada. Proibido de me aproximar do incêndio não resistia à tentação do fogo e a consequência era uma tareia mal o cheiro a fumo entrava em casa. Recordo-me do cheiro do lodo junto ao velho cais comercial onde já desapareceram os guindastes que carregavam a palha e o granito, agora é uma imensa muralha abandonada à espera de navios imaginários. Quer acreditem, que não, em cada cais o lodo tem um cheiro diferente e seria capas de identificar cada um, passadas décadas o cheiro é o mesmo.
Vila Real de Santo António está muito mais pobre e cada vez mais parecida a qualquer outra Vila, perdeu-se toda a riqueza etnográfica ligada ao mundo das pescas, as amoreiras que sobraram do tempo da indústria da seda lançada pelo Marquês de Pombal quase se limitam às que decoram a “escola primária dos moços” (a das moças ficava a uma distância razoável para evitar misturas precoces), da indústria conserveira sobram algumas ruínas. Já não há personagens típicas como o Baguinho de Milho (tão leve que só não era levado pelo vento porque o vinho fazia de lastro), o Chavelhita, o ardina que perante a ansiedade dos clientes do 25 de Abril de 74 pegou nos jornais e atirou-os ao ar na Praça para que cada um se servisse, o irmão do Chavelhita que vítima da guerra colonial pouco mais dizia que quem passa por elas é que sabe e as catanas pareciam bifes, o Inácio (diziam que era maluco) que entrava no tempo de Salazar subia ao altar durante as missas de domingo para fazer a sua homilia contra o ditador. Agora as personagens são outras, a autarquia apostou na Astróloga Maia e no Carnaval traz “vedetas” como o José Castelo Branco.
Mas vive-se hoje melhor, diluíram-se as castas em que estruturava o tecido social, acabou a exclusão racista dos “cuicos”, há menos miséria escondida em guetos, sente-se uma profunda mudança trazida pela democracia e pelos novos tempos numa terra que para o antigo regime tinha uma cruz em cima. Só é pena que com a voracidade do tempo se tenha perdido muita das memórias que preenchem as minhas referências da infância.