Os nomes agora são os da moda, há algum tempo eram todos Franciscos e as moças (só) Marias, depois passaram a ser Martins e agora que qualquer pobretana descobriu a moda já deve estar para mudar. O meu avô tinha um nome vulgar, era Bernardino, como o irritante líder parlamentar do PCP. Mas mais interessante do que o nome era a alcunha, homem louro, alto e de olhos claros, viveu em Alcoutim onde ganhou a alcunha de Amor Sem Dentes, sabe Deus porquê.
Este triângulo de território algarvio demarcado por Alcoutim, Cacela Velha e Vila Real de Santo António tem as fronteiras territoriais bem menos difusas do que as culturais, isolada do resto do país com uma meteorologia bem diferente da que os serviços meteorológicos atribuem ao sotavento algarvio (quando cá estou informo-me na Tele Sur), como uma flora muito marcado por sapais e uma serra desértica deu lugar a um carácter muito próprio, carácter muito evidente na forma de viver, de pensar e de rir. António Aleixo é um bom exemplo do temperamento dos que por aqui nasceram, o humor mordaz é comum a muitos conterrâneos. Alguns dirão que este humilde Jumento tem essa marca, mas é bem pior, é um híbrido relativamente comum nesta região.
O Amor Sem Dentes foi um aventureiro, era mecânico do Dr. João Francisco Dias, um médico Sem Semana que ainda hoje é recordado com saudade em Alcoutim , daí partiu para a Guerra Civil de Espanha onde esteve por aventura e de lá voltou com uma espanhola de Isla Cristina, a minha avó. Não conheci o meu avô, dele tenho na memória os caixotes cheios de revolveres semi-desmontados e relógios que a minha avó guardava debaixo da cama, na casa da Junqueira. Morreu novo em tempos de paz e a minha avó acabou por ser a Ti Maria Espanhola para o resto da vida, durante décadas viveu isolada das suas irmãs, que só reviu depois do 25 de Abril. Durante décadas não existiu, não tinha documentos portugueses e por isso não podia ir a Espanha obter documentos espanhóis, restava-lhe um documento do nascimento, mas como todas as crianças eu tinha a mania de coleccionar selos e não resisti em cortar o documento de nascimento para lhe ficar com os selos. Voltou a ser gente com o 25 de Abril e ainda teve direito a uma pensão razoável porque o pai tinha sido soldado espanhol na guerra em que a Espanha teve de enfrentar os EUA, depois destes terem declarado guerra a Espanha na sequência de uma explosão acidental de um navio militar estacionado em Havana. Por lá lutou e sofreu como prisioneiro, acabando por ser um dos poucos prisioneiros. Ao contrário do que sucede em Portugal na Espanha não se abandonam os seus por esse mundo fora e presta-se honra à memória dos que lutaram.
Sou, portanto, um híbrido (mais ou menos o mesmo que sucede com as mulas de que também tenho que reconhecer ter um pouco), mistura de algarvio com andaluz, de algarvio que andou pelas guerras de Espanha, por onde enfrentou condenações várias, e de andaluz que lutou com a grande potência emergente em Cuba, onde enfrentou o paludismo e as moderníssimas metralhadores Gatling. Um híbrido entre a serra e a praia, entre a Espanha e Portugal, entre a guerra civil e a guerra com os EUA. Não sou louro nem tenho olhos azuis, mas os genes ainda por cá andam e de vez em quando fazem-me uma partida genética, mas a maior partida é ser um Amor Sem Dentes, um saltimbanco incapaz de aceitar amarras, de pensar com medos e receios, educado por uma mãe para quem os princípios e a justiça sempre estiveram à frente dos interesses pessoais.
Anda por aí muita gente brasonada, ouros têm sido brasonados pelo dinheiro alheio, eu lá continuo sendo um Amor Sem Dentes, prisioneiro da minha liberdade, marcado em não estive mas que gostava de ter vivido, uma mistura dos moinhos imaginários de Cervantes com as quadras de Aleixo, armado de velhos revólveres desmontados e convencido que que é possível vencer políticos sem escrúpulos armados com Getlings disparando centenas de páginas de tablóides. Mas garanto-vos que o prazer que nos proporciona a liberdade é bem maior do que a suavidade da condução de um BMW topo de gama.
