quinta-feira, outubro 26, 2017

MARCELO E A CONSTITUIÇÃO



Na sua conversa de Oliveira do Hospital, para fundamentar as exigências que fez ao governo através da comunicação social, para que o povo ficasse a saber quem manda, o Presidente da República apelou aos seus poderes constitucionais. Depois de uma parte do discurso elaborado para puxar pela lágrima de quem o ouvia e para ganhar mais likes junto do povo, Marcelo diz que foi eleito “para cumprir e fazer cumprir a constituição que quer garantir a segurança dos portugueses”, de seguida desenvolveu uma longa tese sugerindo que os portugueses ficaram fragilizados, tirando a conclusão de que estamos perante um problema de segurança, daí ter o poder de cumprir e fazer cumprir a Constituição para repor a sua segurança.

Perante um problema de segurança Marcelo usou dos seus poderes constitucionais passando a ditar as suas ordens ao governo, todos perceberam quais as ordens, um programa de combate aos incêndios decidido na hora, indemnizações rápidas e a demissão da ministra. 

Marcelo usa de forma subliminar o seu estatuto de professor de direito para passar a ideia de que de Constituição é ele que sabe. Temos agora um presidente que interpreta livremente e circunstancialmente a Constituição, em função dos seus objetivos políticos e que usando os poderes que ele próprio entende que a Constituição lhe confere dá ordens ao governo em direto e através da televisão, como se o primeiro-ministro fosse um secretário pessoal, para não dizer uma criada de quarto. Até aqui os únicos presidentes que vi darem ordens em direto aos governantes no meio de entrevistas ou discursos para a comunicação social foram Hugo Chavez e Maduro. Mas as consequências dos incêndios a tudo o autorizam, ainda que não explique porque motivo os mesmos incêndios não autorizam o governo a tratá-lo da mesma forma.

Amanhã há um acidente com problema num hospital, Marcelo invoca o seu poder de “cumprir e fazer cumprir a Constituição”, diz que lhe cabe garantir o acesso à saúde e que está quase a chorar por ver tantos velhinhos amorosos a morrer nas salas de espera das urgências e fica logo ali e por ele próprio autorizado a dar ordens ao governo. Que decida um plano de saúde a vinte anos até ao próximo sábado e de preferência depois de se demitir o ministro da Saúde e, quem sabe, sugerindo que se escolherem alguma pessoa da sua confiança será mais simpático no futuro. Se ocorrer um escândalo no ensino faz o mesmo em relação a este setor e o mesmo se pode dizer em relação a qualquer pasta governamental. Agora exige-se que se decida em dois dias para vinte anos e de preferência com um ministro demissionário ou demitido, mais irresponsabilidade é difícil.

Temos agora um presidencialismo à Hugo Chavez, demite-se o ministro e em três dias adotam-se medias com um horizonte de décadas. Em vez das reuniões semanais dão-se as ordens em direto no meio de comunicações aos portugueses. É Marcelo que de forma errática e de acordo com as conveniências da gestão da sua imagem que define as prioridades do país e em questão de semanas deixa de ser a dívida para serem os incêndios ou outro qualquer tema.

O governo deixa de responder perante o parlamento, deixa de governar cumprindo um programa que foi legitimado nas urnas e aprovado no parlamento. O governo passa a ouvir as comunicações ao povo, as piadas na bica ou as conversas no meio das selfies para saber o que vaio para a agenda do Conselho de Ministros no dia seguinte. O governo deixa de pensar no longo prazo, decide na hora por encomenda de Cavaco e no dia seguinte até o deputado Amorim vem saudar as novas medidas. Mais ridículo é impossível, mas com Marcelo tudo tem muita graça.

Deixa de haver reflexão e mesmo debate parlamentar, é o presidente que em função da gestão dos seus likes e selfies que vai dando ordens diárias ao primeiro ministro. Enfim, com este Presidente da República o político português com mais vocação para primeiro-ministro é Pedro Santana Lopes, até parece que foi feito à medida deste Presidente. Com este Presidente em vez de primeiro-ministro temos um mordomo e podem ser dispensados o Parlamento e o Tribunal Constitucional, porque é ele que sabe de Constituição e de quem o povo quer beijinhos, muitos beijinhos.