Se para o cristianismo é mais difícil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus, para as ideologias da esquerda ser pobre é um símbolo de pobreza ideológica ao ponto de para o leninismo o proletariado ser a classe social líder da classe operária. Se o cristianismo faz o elogio da pobreza, com muitos dos seus crentes a fazerem votos de pobreza e o clero a dedicar as suas homilias aos pobres como os eleitos de Deus, uma boa parte da esquerda vê nos pobres o símbolo da pureza. Para os cristãos os pobres vão para o céu, para a esquerda os pobres votam nela.
A atual situação política portuguesa reflete claramente esta abordagem, Marcelo fez do seu mandato um magistério de dedicação aos sem-abrigo, passando as suas noites da distribuir jantares, enquanto o governo se desdobra em iniciativas orçamentais para irar aos ricos e dar aos pobres. Marcelo atua por devoção cristã, o governo fá-lo por militância política.
A ideia de que os pobres são de esquerda está no centro da ideologia e dos programas políticos da esquerda e é uma herança dos tempos da Revolução Industrial e das obras de Karl Marx. O problema é que os pobres de hoje são bem diferentes dos pobres do século XX, são diferentes nas causas da sua pobreza e são-no também nos seus posicionamentos políticos. Se existissem algumas dúvidas bastaria ver o que se está passando em termos eleitorais em países como o Reino Unido ou a França.
A grande base de apoio da extrema-direita são os grupos sociais com menos recursos, que muitas vezes são designados por “mais desfavorecidos”, isto é, aqueles que supostamente eram a base social da esquerda são agora o exército da extrema-direita. A confusão é tanta que se traduzirmos o discurso político da senhora Le Pen para português e perguntarmos a alguém quem o escreveu a resposta mais provável é que foi Jerónimo de Sousa ou Catarina Martins.
Isto não é nada de novo, recordo-me de que quando a AD de Sá Carneiro ganhou as eleições legislativas Freitas do Amaral ter declarado com grande euforia que a AD tinha ganhos nos bairros da lata. Bem mais recentemente Santana Lopes ganhou as autárquicas de Lisboa com os votos conquistados nos bairros sociais que João Soares tinha construído.
A pobreza de hoje é bem diferente da do século passado, é bem mais cultural do que era no passado e nem sempre ser mais pobre resulta de uma situação de desfavorecimento. A classe média qualificada é bem menos sensível ao discurso da extrema-direita do que sucede com os “mais desfavorecidos” que nos dias de hoje também são os mais ignorante e mais dados a verem a política através das revistas cor de rosa, dos pasquins ou dos programas de televisão dedicados ao crime.
Mais tarde ou mais cedo a esquerda terá de repensar o seu enquadramento social sob pena de lhe suceder o mesmo que sucedeu ao PSF, ao PCF ou aos nostálgicos do maio de 68.