Imagine-se que a direita portuguesa tivesse convocado um referendo para a semana seguinte à discussão da petição das senhoras anti-aborto para perguntar aos portugueses se aceitavam as alterações da lei propostas pelas tais senhoras. Teria caído o Carmo e a Trindade com a indignação da esquerda e em especial dos syrizas tugas, que era anti-democrático, que coisas tão importantes não se decidem sem reflexão, que não havia tempo para a oposição intervir, que o governo estava em vantagem. Como é lógico teriam razão e até poderiam usar tal referendo para demonstrar a desconfiança histórica da esquerda portuguesa em relação a esta forma de ouvir os eleitores.
Imagine-se que quando Vítor Gaspar se demitiu à pressa com uma carta reconhecendo o falhanço estava em Belém uma espécie de Cavaco de esquerda que tivesse optado por convocar um referendo para a semana seguinte para que o povo se pronunciasse sobre a continuação da austeridade ou a recusa em continuar a aplicar o memorando mais as suas sucessivas alterações secretas. Passos Coelho protestaria, a Europa declararia o referendo ilegal e o Hollande ameaçaria deixar de bombardear a Líbia, onde os seus Miraje estavam a dar uma preciosa ajuda ao EI, para atacar São Bento.
No meio deste ambiente de PREC em que a Europa mergulhou vale tudo, o governo grego fazem chantagem sobre a Europa ameaçando-a de arrastar a zona Euro para a bancarrota da Grécia, ameaça os outros países do sul com o contágio das consequência das suas decisões, dizem que não saem da zona euro mesmo que o país tenha de regressar a um regime económico assente na troca directa. Por sua vez, a Europa faz chantagem com os gregos ameaçando-os com a miséria se não votarem no sim e chamam a si a decisão sobre as consequências do referendo substituindo-se à Grécia para decidir quem pode e quem não pode ser governo, nada que já não tenha sucedido no passado, foi com um Conselho presidido por António Guterres que a Europa condenou a Áustria ao isolamento porque os austríacos elegeram radicais de direita, primos dos mesmos radicais de direita que na Grécia formaram um governo com os radicais da esquerda.
No meio de tudo isto e em ambiente pré-revolucionário os gregos vão votar ainda que não saibam no que estão votando. Uns votam não porque a sua agenda ideológica é indiferente às consequências económicas, outros porque ainda acreditam que a Europa tem medo da bancarrota grega e da estratégia de terra queimada de Tsipras e Varoufakis, alguns acreditam mesmo que a democracia grega se sobrepõe à vontade dos outros povos numa espécie de subsidariedade eleitoral. Os do sim acham que estão votando nas legislativas e que se a coisa der para o torto os militares dão a volta à situação com o apoio da Europa.
Há quem chame a isto um exercício de democracia, há quem considere este referendo uma emanação democrática dos antepassados dos gregos, há quem defenda que é com referendos organizados desta forma e com perguntas que mais parecem uma página da Wikipédia que se deve decidir o futuro de um país e de um povo e provavelmente o sucesso ou a desgraça da União Europeia. Noutros tempos os coronéis ou as guerrilhas do partido resolviam isto a tiro, agora transformaram os gregos em monições de uma guerra feita na comunicação social e, por enquanto, com manifestações de rua.
Se o sim ganhar o Syrisa vai abandonar o poder ou vai manter-se para cumprir o mandato e volta a arrastar os pés durante mais uns meses com a economia grega paralisada e com as caixas multibanco a emitir senhas de racionamento? Se o não ganhar o que vai fazer o Syrisa perante credores que dirão que o referendo não os vincula?
A verdade é que seja qual for o resultado do referendo a Grécia entrará num impasse, quer no plano da política interna, quer no quadro das negociações com os credores. Isto porque o referendo não passa de uma farsa democrática de valor muito questionável, decidido de forma emotiva e num ambiente de crispação em que o governo usa as vantagens do poder. A Grécia estava à beira da bancarrota e com esta fantochada democrática arrisca-se a que no domingo fique também à beira de uma guerra civil.