quarta-feira, fevereiro 11, 2015

Há um pequeno nazi a crescer dentro de muito boa gente

A forma mais fácil de ordenar e sistematizar informação é a numeração, é por isso que todos temos um número de BI, um número de clientes da EDP, a nossa identidade na infinidade de sistemas de bases de dados onde a nossa vida é registada é formada por uma imensidão de números, podemos ser identificados de mil e uma formas, pela matrícula do automóvel, pelo número do BI ou do passaporte, pelo número de utente do SNS, pelo número do telefone, pelo número da porta.
  
Mas enquanto cidadãos não somos um número, temos nome, somos gente, é por isso que as cartas do fisco são endereçadas ao nome do contribuinte e não ao seu número, as facturas da EDP têm o nome do cliente e não apenas o número do contrato. Tirar o nome a alguém é retirar-lhe a identidade enquanto a cidadão, é negar-lhe a cidadania, é recusar-lhe a condição de gente. Foi isso que os nazis fizeram a todos os que mandaram para os campos de concentração e de extermínio.
  
Antes de serem gaseados em campos como o de Awschwitz os judeus já tinham sido mortos enquanto cidadãos, deixavam de ser humanos quando recebiam uma tatuagem com o seu número, a partir desse momento deixavam de existir, a morte era apenas um acto burocrático. Tratar alguém por um número, recusando-lhe o direito a uma identidade que se identifique com cidadania, é reduzir alguém à condição animal, a um número sem direitos constitucionais ou humanos, mais um.
  
Se a bandalhice a que assistimos na comunicação social com a violação sistemática do segredo de justiça, que já ninguém sugere sequer que não parte da acusação é um acto de corrupção e de puro banditismo a que já estamos tão habituados, está para a nossa justiça como a gorjeta para o empregado de mesa, com Sócrates é a primeira vez que alguém presumivelmente inocente perdeu o direito ao nome e passou a ser identificado pelo número, o preso n.º 44.
  
Mal entrou no presídio de Évora alguém que só pode ter sido o director da prisão, os guardas prisio9nais ou os magistrados que têm acesso a essa informação, fez constar na comunicação social que Sócrates seria o preso nº 44. No mesmo dia todos os órgãos de comunicação social fizeram um passa-palavra e divulgaram a preciosa informação, agora podemos tratar o político que odiávamos por “preso n.º 44” e houve muito boa gente que começou a fazê-lo nos seus artigos, nas notícias dos seus jornais, nos seus blogues ou nas suas conversas privadas.
  
Podia ser o Sócrates como podia ser qualquer outra pessoa odiada e isso é o que não falta no país, tanto podia ser Mário Soares (vejam como a associação sindical dos juízes se excitou com a possibilidade de perseguir judicialmente Mário Soares, apontando-lhe um crime do qual poderia resultar a sua numeração prisional) como Pedro Santana Lopes, da mesma forma que nos campos nazis todos os que eram odiados pelos nazis recebiam o mesmo tratamento, costumamos referir os judeus por terem sido as grandes vítimas, mas foram também os ciganos, os homossexuais, os republicanos espanhóis ou os comunistas.
  
Basta procurar por preso n.º 44 no Google e vemos centenas de referências, encontramos um artigo de um tal J. M. Fernandes, antigo redactor da Voz do povo que agora que agora anda armado em ideólogo freelancer da direita quase extrema-direita, escrevendo um artigo no elegante Observador com o título “o martírio do preso n.º 44”, Mas podemos encontrar outros articulistas muito educados, para não referir blogues e páginas do Facebook.
  
Hoje é o preso n.º 44, amanhã será do n.º 200, um dia destes diremos que o nosso adversário é o político n.º 13. Não é por ser Sócrates que o ex-primeiro-ministro é tratado por um número, mas sim porque dentro de muita gente, de muito democrata, de muito ideólogo da treta há um pequeno nazi que aos poucos vai crescendo. O nº44 do presídio de Évora teve o condão de trazer há luz muitos 44 nazis escondidos dentro de gente com quem convivemos no dia a dia, que ouvimos ou lemos. Sucedeu o mesmo na Alemanha nazi, o SS tinha sido o amigo ou o vizinho, quase sempre um frustrado, alguém que numa qualquer agremiação aprendeu a odiar.