sexta-feira, junho 24, 2011

1986-2011

Em 1986 entrei para o ministério das Finanças, em 2011 ainda por lá me arrasto. Aqui fica a comparação do que então encontrei com a realidade dos nossos dias.

Secretaria de Estado:

Em 1986 o gabinete do secretário de Estado do Orçamento tinha como chefe de gabinete um funcionário experiente e contava com um número reduzido de assessores e adjuntos, a maioria dos quais funcionários das direcções-gerais. Nesse tempo fez uma imensa reforma fiscal na sequência da adesão à CEE (criação do IVA, do IRS e do IRC), a secretaria de Estado tinha o fisco e o orçamento, existiam fronteiras intracomunitárias e as Alfândegas adoptaram a legislação comunitária, e ainda existia a Guarda Fiscal na dependência do ministério das Finanças.

Em 2011 a secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais apena tem as duas direcções-gerais do fisco (DGAIEC e DGCI), o chefe de gabinete era um menino de família de uma casta superior do partido no governo sem qualquer experiência no Estado e uma reduzida experiência profissional, o gabinete conta(va) com um grupo numeroso de adjuntos e assessores, a maioria dos quais jovens tigres inexperientes, vindo de consultoras e escritórios de advogado.

Em 1986 fez-se uma profunda reforma fiscal, em 2011 possibilitou-se a negociação das dívidas ficais em tribunais arbitrais cujos membros são pagos a peso de ouro estando o estatuto limitados a dourados e mestres em direito fiscal, situação que garante futuros rendimentos ao secretário de Estado, precisamente um doutorado em direito.

Directores e subdirectores-gerais:

Em 1986 os directores e subdirectores-gerais era, em regra, escolhidos pelo mérito e capacidade, eram tratados com dignidade com os governantes e sobreviviam nos cargos para além das mudanças de governo.

Em 2011 os directores-gerais são cargos de nomeação política, são tratados abaixo de cão, em muitos casos o critério da competência é ignorado na escolha, chegam aos cargos porque são do partido, da família ou do círculo de amigos dos governantes, uma boa parte deles são uns bananas.

Chefe dos serviços:

Em 1986 o meu chefe de divisão era um técnico experiente, partilhava o gabinete com mais dois técnicos, não tinha secretária de apoio ou pessoal não existiam telemóveis, era o primeiro a entrar e o último a sair do serviço, não tinha qualquer remuneração assessória. Os chefes de divisão eram escolhidos por critérios de competência e quando um saia a escolha para o substituir recaia sobre um dos técnicos mais competentes, era uma escolha quase natural e na generalidade dos casos inquestionável.

Em 2011 fazem-se concursos para escolher os chefes, procedimento caro e demorado, são ministrados cursos pagos a peso de ouro nos INA aos escolhidos, recebem ajudas de representação, muitos mal são vistos nos serviços, têm telemóvel, gabinete individual e muitos não prescindem secretária e se não lhes puserem travão ainda se vão lembrar de ter chefe de gabinete, adjuntos e assessores. O nível de competência dos actuais chefes dos serviços é uma sombra do que era no passado.

Funcionárias administrativas:

Em 1986 não existiam computadores e tudo tinha que ser “batido” na máquina de escrever, para isso a direcção de serviços contava com duas dactilógrafas, O director de serviços contava ainda com uma administrativa de apoio que assegurava todo os secretariado do serviço.

Em 2011 há batalhões de administrativas a apoiar as chefias, fazem coisas muito importantes como, por exemplo, ir fazer os recados pessoais das chefias pois são gente muito atarefada, abrem-lhes as janelas nas ausências para arejarem os gabinetes e protege-nos de estranhos e dos funcionários com lealdade canina.

Uma boa parte tira licenciaturas nessas universidades onde o diploma vale tanto em termos académicos como uma embalagem de lenços de assoar e depois ascende ao estatuto de técnico superior graças a mecanismos de queiparação.

Valores:

Quando terminou o estágio de ingresso em 1986 o director-geral foi encerrar o curso, quando entrou todos os estagiários se levantaram, ouviram o discurso e questionaram-no com respeito.

Em 2010 coordenei um estágio e fiz questão de insistir com o director-geral para que o encerrasse, quando entrou só levantaram uns quantos estagiários, os que eram provenientes das forças armadas e militarizadas, e muitos dos que depois o questionaram fizeram-no como se estivesse a beber uns copos na discoteca.

Em 1986 tinha-se um grande respeito pelos funcionários no topo da carreira, hoje somos todos iguais.

Avaliação:

Em 1986 a avaliação era simbólica, os concursos de promoção eram exigentes e chegar ao topo da carreira era um processo que levava mesmo o tempo de uma carreira, os bons técnicos eram conhecidos e reconhecidos e os resultados dos concursos costumavam corresponder ao prestígio reconhecido pelos serviços e pelos pares dos concorrentes.

Em 2011 há uma avaliação da treta, consome recursos infindáveis, transforma os quadros em estatísticos de trabalho, os objectivos e os resultados são manipulados e acabam por ser os chefes a avaliar os funcionários de forma discricionária, se dantes sabia-se quem eram os bons, hoje também se sabe, dantes os bons eram os que mereciam o reconhecimento colectivo e nada ganhavam por sê-lo, hoje os bons são os escolhidos pelos chefes e recebem pequenas mordomias.

Formação:

Em 1986 a formação era escassa, a divisão de formação era diminuta, não havia informação em rede, cabia a cada técnico organizar a informação e estudá-la de forma a ser capaz de dar resposta a qualquer solicitação profissional.

Em 2011 os funcionários quase não estudam, os serviços de formação são mega serviços, organizam-se acções de formação em grande quantidade, sem grande qualidade e com avaliação simbólica, apenas para adornar os relatórios de actividade., Os funcionários são agoira “altamente” especializados, o que significa que sabem pouco sobre um pequeno segmento de matéria.

As mudanças de governo:

Em 1986 uma mudança de governo não criava sobressaltos nas direcções-gerais.

Em 2011 os serviços quase paralisam quando o governo se aproxima do fim do mandato ou quando o parlamento é dissolvido, a mudança de governo determinará quem sobe e quem desce nos próximos anos, o futuro de uma boa parte dos funcionários depende do nome do novo ministro ou secretário de Estado.