Antes da dissolução do parlamento cada subida da taxa de juro da dívida soberana era festejada nas redacções dos jornais e nas sedes de alguns partidos, cada descida do rating da República dava lugar a um orgasmo colectivo, o que importava era que o país se estava a afundar e isso anunciava condições para antecipar eleições. Nem se podia ousar questionar o funcionamento dos mercados que Cavaco Silva se apressava a defender que deveríamos respeitar os especuladores, deveríamos ficar de bico caladinho.
Agora tudo mudou, Paula Teixeira da Cruz, vice-presidente do PSD, descobriu que Portugal tem uma situação que não vivemos há mais de um século, agora já é mais urgente formar o governo do que há poucos meses foi aprovar um orçamento, agora já se podem propor programas mais radicais do que o da troika quando há pouco tempo haviam limites para a austeridade.
Quando o país foi lançado numa pré-crise política por um discurso presidencial , quando um programa de austeridade foi chumbado por representar austeridade em demasia, o interesse nacional era a crise política e o caminho da bancarrota. Agora parece que o interesse nacional é salvar o país e todos devemos ajudar Cavaco Silva, Passos Coelho, Paulo Portas e a dona Maria a fazê-lo. Estão dispensados os que apelaram à unidade nacional, agora o que importa é uma maioria consistente e quem assinou ou negociou o acordo com a troika deve ser a oposição responsável que no passado ninguém foi.
A luta terrível pelo poder, uma luta sem escrúpulos onde os fins valeram os meios está a dar lugar a um ambiente de União Nacional, a mesma União Nacional que Passos Coelho muito bem rejeitou. Os jornalistas, falsos independentes, empresários com holdings estabelecidas na Holanda para não pagarem impostos em Portugal, uma imensa procissão de falsos nacionalistas tentam agora impor um ambiente de União Nacional, todos devemos estar empenhados na salvação do país.
Agora a luta política é má para os interesses do país, a diferenças de ideias e de projectos deve dar lugar à unanimidade em torno do governo eleito e apoiado por Belém. Os que nos jornais e no Facebook colaboraram com os especuladores para afundar a economia portuguesa comportam-se como os bombeiros pirómanos que primeiro ateiam o incêndio e depois são os primeiros a apresentar-se no quartel para o combater.
Os que no passado tudo fizeram para ampliar o descontentamento tentam agora na comunicação abafar antecipadamente esse descontentamento, os que diariamente consultavam as taxas de juro e o PSI20 agora ignoram-nos, os que apoiavam a aliança da direita com extrema-esquerda no parlamento para tornar o país ingovernável agora desprezam Jerónimo e Louçã e exigem do PS o apoio condicional ao governo, os que transformaram o parlamento numa bandalhice política querem transformá-lo agora na assembleia nacional.
O Balsemão está interessado nas receitas publicitárias da RTP? O Belmiro de Azevedo sonha com mais uma opa à PT? Os privados aguardam pela privatização de serviços de saúde? A Cofina espera ganhar o quarto canal? Não senhor, de repente não há interesses, estão todos empenhados na defesa do interesse nacional e em nome desse interesse todos devemos calar e consentir, não é tempo para descontentamento ou oposições.
Os grupos de interesses que se empenharam nas eleições apostam agora em condicionar a democracia, tratam Passos Coelho como primeiro-ministro estagiário, parece querer promover Cavaco Silva ao estatuto de caudilho e promovem um ambiente político em que se procura inibir qualquer voz discordante. Estamos vivendo um ambiente em que os jornalistas devem apoiar o regime, os trabalhadores e empresários devem colaborar num ambiente corporativista e a oposição deve estar empenhada nas medidas de salvação nacional. Passos Coelho recusou a União Nacional mas parece haver quem o queira transformar num presidente do conselho. Há quem queria transformar o período de graça do governo num ambiente de União Nacional durante toda a legislatura.