A democracia faz sentido enquanto as instituições e as suas regras são respeitadas, só faz sentido respeitar as primeiras quando estas respeitam as segundas. É para que a democracia funcione enquanto forma de governo que há uma Constituição que determina os limites com que o poder, mesmo quando eleito democraticamente, e os direitos dos cidadãos que em caso algum devem ser desrespeitados. A Constituição é como um código da estrada para os políticos, ninguém pode decidir a meio de uma viagem que se passa a circular pela esquerda ou que são os deste lado que têm prioridade.
E para que a Constituição regule a democracia existe um tribunal constitucional a que se pode recorrer para aferir se um governo desrespeitou os seus princípios. E para que este mecanismo funcione cabe ao Presidente da República velar pela aplicação da Constituição, é por isso que tem o poder para enviar os diplomas do governo ou aprovados pelo parlamento para que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a sua constitucionalidade.
O Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre o corte de uma parte dos vencimentos e concluiu pela inconstitucionalidade de um corte definitivo. Portanto, não restam dúvidas de que o corte dos subsídios, que configura um corte arbitrário e discriminatório de rendimentos, é igualmente inconstitucional. Mesmo o argumento da sua inevitabilidade pode ser questionado à luz do que sucedeu com o corte de metade do subsídio de Natal de 2011 que veio a confirmar-se não ter passado de um abuso de poder.
Mas já se percebeu que o PS não vai recorrer ao Tribunal Constitucional e Cavaco Silva pode esquecer-se de tudo o que disse e homolugar o diploma sem consultar o Tribunal Constitucional, coisa que fez quando estiveram em causa valores bem menos importantes. Isto significa que muitos portugueses irão passar fome porque um governo retirou-lhe parte dos seus rendimentos de forma prepotente, desrespeitando a Constituição da República e contando com a cobardia do maior partido da oposição e a conivência do Presidente da República.
Numa situação de verdadeiro cambalacho político como aquela a que poderemos assistir quais os direitos de um cidadão, de que lhe serve viver em democracia para que serve a Constituição? Neste contexto A Constituição da República poderia muito bem ser distribuída como rolo promocional do papel higiénico da reforma pois uma constituição que não é para aplicar tem a mesma utilidade que o papel higiénico. E num país onde a constituição é equiparada a papel higiénico pelos que a deviam respeitar e fazer respeitar então teremos de concluir que a democracia é aquilo que se limpa com papel higiénico.
O que pode fazer um povo quando três políticos decidem suspender a democracia ignorando a Constituição?
Não vale a pena protestar porque os jornalistas estão comprados pela prometida venda da RTP, não vale gritar ao primeiro-ministro porque este é autista, de nada serve protestar contra Seguro porque o líder da oposição é palerma e é inútil ir a Belém porque por aquelas bandas parece ter-se medo do governo, vá-se lá saber porquê. Vivemos, portanto, numa democracia sem direitos em que a regra é o come e cala e, para o caso de alguém ignorar esta regra, o governo teve o cuidado de no OE de 2012 reforçar o orçamento das polícias.
Há dias muita gente ficou indignada com as palavras de Otelo, mas parece esquecerem que ao ficarem calados porque com este cambalacho político o governo defende os interesses de alguns à custa de todos os outros estão a aprovar outras actuações que violem a Constituição e a legalidade democrática. É bom que os que agora metem a Constituição numa sargeta e suspendem a democracia não venham invocar os seus valores e o respeito pela legalidade e pelas instituições democráticas quando já estiverem a precisar de fraldas para incontinentes. Esta combinação entre cambalhacho político e desrespeito pela instituição democrática basilar que é a Constituição num país aruuinado pela corrupção e oportunismo político só pode dar maus resultados.