O regime democrático vive de equilíbrios, é a necessidade e o esforço de atingir esses equilíbrios que atenua as muitas tensões sociais e políticas geradas pela sociedade. Os arquitectos da democracia portuguesa perceberam a importância desses equilíbrios e criaram mecanismos que forçam o seu respeito pelos poderes eleitos. É o equilíbrio entre os diversos poderes, é o equilíbrio de poderes entre Presidência da República e Governo, é o equilíbrio constitucional que garante que determinadas leis exigem um consenso alargado, é o equilíbrio garantido pelos mecanismos de verificação da constitucionalidade e pela independência dos juízes do Tribunal Constitucional.
A direita começou por forçar o país a pedir ajuda internacional e aproveitou a situação para ignorar os interesses nacionais e lançar uma crise política. Durante meses desejou o pior parao país, quando viu os seus desejos concretizados aparceu a oferecer-se como salvadora. Conquistado o poder com um falso programa, com mentiras eleitorais, com ajudas pouco dignas por parte de alguns trastes nacionais e com um candidato travestido a direita venceu. Ignorou o seu programa eleitoral, esqueceu o consenso alargado em torno do memorando com a troika, de cordeiros passaram a falcões.
Em vez de mobilizar o país e o povo para enfrentarem a crise financeira estão a manipular a crise financeira para chantagear os portugueses e as suas instituições, a pouca vergonha chega ao ponto de a ministra da Justiça dar um pontapé na separação de poderes fazendo uma clara chantagem sobre os juízes do Tribunal Constitucional na questão do corte dos subsídios.
O país, os eleitores, os tribunais, os partidos políticos, a generalidade das instituições estão sob a chantagem do governo devidamente apoiada numa máquina de propaganda que, por sua vez, é alimentada por uma comunicação social ameaçada pela chantagem da privatização da RTP. Os jornais e televisões interessados em partilhar o espólio da RTP ou em que esta não seja privatizada deve fazer tudo o que o ministro Relvas e os seus assessores mandam.
O Presidente da República questiona publicamente a justiça e constitucionalidade de medidas orçamentais mas acaba por promulgar o Orçamento de Estado sem o questionar, afirma-se preocupado com os excessos de austeridade mas apoia cada decisão do governo sem a questionar, o país parece que deixou de ter Presidente da República para passara ter em Belém um amanuense bem remunerado e que já ultrapassou a idade da reforma.
O governo sabe que o corte dos subsídios é inconstitucional mas ignora-o e faz chantagem sobre o Tribunal Constitucional com a ameaça da bancarrota e confrontando este tribunal com uma situação de facto. Graças à manobra de Cavaco Silva se o Tribunal Constitucional se decidir pela inconstitucionalidade coloca o país numa situação difícil, sem tempo para adoptar medidas alternativas e obrigado a dar o dito pelo não dito no plano internacional.
Passos Coelho e Paulo Portas foram consultados aquando da negociação do memorando pelo governo de José Sócrates, agora ignora ostensivamente o PS quando adopta medidas não previstas no memorando sem proceder a qualquer consulta a este partido, a regra tem sido chantagear José Seguro invocando as supostas responsabilidades do PS na crise financeira internacional.
O governo sabe que a UGT é uma ficção sindical, que o seu líder pouco mais representa do que os bancários e que um acordo de concertação social assinado apenas com esta central garante tudo menos a paz social nas empresas. Mesmo assim assina um acordo com esta central, acordo que em parte nem se aplica à maioria dos trabalhadores que ela representa, e usa esse acordo para forçar todos os trabalhadores portugueses a sujeitarem-se a medidas que não tiveram oportunidade de discutir. A palhaçada é tão grande que agora até a UGT se queixa de que o governo só aplica o que lhe interessa, só falta o Gaspar dizer-lhes “não há dinheiro” e depois perguntar-lhes qual é a palavra que não perceberam.
O problema é saber até quando os portugueses vão ser mansos, até quando o PS aceita a chantagem, até quando os representantes que não são representados pela UGT vão aceitar o que lhes estão fazendo sem qualquer processo negocial, até quando dezenas de milhares de portugueses entregam a casa à banca ou ao fisco quase em silêncio, até quando os bairros problemáticos atingidos pela fome em consequência dos apoios sociais se aguentarão sem explodir, até quando os que construíram a democracia e têm os meios e obrigação da defender vão ser pacientes, até quando todo um país vai assistir incrédulo a um governo com 11 ministros dos quais uma dezena não se aproveita.
O Tribunal Constitucional pode fazer de conta que tudo está de acordo com a Constituição, o Presidente da República pode esquecer-se do que viu nos seus roteiros da exclusão, da fome e da injustiça e dedicar-se a vendedor internacional do país de sucesso, o ministro da Administração Interna pode assegurar que os seus polícias estão cheios de pica para a pancada e o Seguro pode continuar a construir a sua imagem de bom rapaz. Mas um dia tudo vai desabar e há um sério risco de nesse dia ser demasiado tarde para recuar, para respeitar a democracia, para ter consideração pelas oposições, para se perceber que um governo deve governar para o povo e não para os banqueiros, os senhores da CIP e para a procissão dos Catrogas.