quarta-feira, julho 06, 2011

Direito à insoburdinação fiscal

Se precisar de fazer obras em casa e um empreiteiro me propuser um preço com factura e um outro substancialmente mais baixo sem factura, devo ou não aceitar? O meu dever enquanto cidadão é rejeitar, em limite até poderia considerar-se que temos igualmente o dever de denunciar tais situações. Sabemos que vamos pagar mais mas ao exigir a factura certificamo-nos de que ninguém foge aos impostos, garantindo o financiamento dos serviços públicos de que precisamos ao mesmo tempo que promovemos uma distribuição mais equitativa da carga fiscal.

Mas ao cumprirmos com as nossas obrigações fiscais ganhamos o direito de exigir que os governos asseguram a equidade e a justiça tributária e que assegurem uma boia gestão da máquina fiscal visando o combate eficaz à fraude e evasão fiscais e que adoptem uma política fiscal que distribua os custos do Estado de forma equilibrada. Se tal suceder e a generalidade dos cidadãos exigirem dos seus parceiros o cumprimento das obrigações fiscais a evasão fiscal é minimizada e podemos confiar no fisco e nos governantes.

Mas se nada ou quase nada for feito no combate à evasão fiscal e a política fiscal se limitar a aumentar os impostos fáceis de cobrar, não perseguindo qualquer objectivo de equidade e concentrando a carga fiscal apenas numa parte dos cidadãos? É precisamente isto que tem sucedido, a máquina fiscal está em letargia desde há muito tempo e nos últimos meses entrou em regime de gestão com a anunciada (con)fusão da DGCI e da DGAIEC.

Coloquemos de novo a questão inicial: se depois de nos cortarem 10% do vencimento, de nos terem aumentado o IVA, de nos terem aumentado o IRS por via da alteração do regime dos benefícios fiscais, de terem anunciado um aumento do IRS correspondente a metade do subsídio de Natal e de mais um aumento do IVA, desta vez sobre os produtos de primeira necessidade, devo rejeitar uma oferta de um preço mais baixo contra a não exigência da factura?

Sem uma política determinada de combate à evasão fiscal nada nos garante que as facturas são contabilizadas e em vez de estarmos a aumentar as receitas fiscais estamos a dar mais um bónus para os lucros de um incumpridor. Por outro lado, se o governo esqueceu a equidade e a justiças fiscais praticando ele próprio o oportunismo fiscal lançando impostos apenas sobre os que ainda os pagam, ainda por cima aumenta esses impostos para poder reduzir as contribuições sociais das empresas sem quaisquer garantias de que estes aumentarão o emprego, o cidadão comum tem o direito de se questionar se não estará a promover a justiça fiscal sempre que se escapa ao pagamento de um imposto. Se há injustiça fiscal por excesso de carga fical sobre uma parte dos cidadãos este pooderão considerar que fugir aos impostos é uma questão de justiça e se o governo não a sabe ou recusa-se a fazê-la então cada um se sente no direito de a fazer pelas suas próprias mãos.

A forma irresponsável, oportunista e quase brutal como os governos têm aumentado os impostos ao mesmo tempo que nada fazem contra a evasão e fraude fiscais está no limiar do aceitável e suportável, limiar a partir do qual os (cada vez menos portugueses) que cumprem as suas obrigações fiscais poderão sentior que têm o direito à insubordinação fiscal.

Se as grandes dívidas da banca e das grandes empresas de distribuição e serviços acabam por se arrastar nos tribunais até às calendas gregas, se o número de patos-bravos que se escapam aos impostos aumentam exponencialmente, se o Estado governa de forma irresponsável a máquina fiscal ao mesmo tempo que enche os cofres praticando o proxenetismo fiscal os que nada beneficiam com isto têm o direito de se indignar e como nada ganham com o protesto num contexto em que os órgãos de comunicação social se vendem a troco de negócios com o poder resta-lhes dizer não..

Ou os governos dão sinais de firmeza a combater a evasão fiscal como o tem dado na decisão de vender empresas públicas, ou mostra que está tão empenhado em combater a evasão fisccal como o está em aumentar o IVA para reduzir a TSU, ou combate os lóbis corruptos que vivem da lei fiscal com o mesmo empenho que tenta captar a simpatia dos autarcas que querem manter abertas escolinhas medievais, ou corre um sério risco de ver muitos do que até agora eram cidadãos cumpridores a considerarem que a fuga aos impostos é um direito e a única forma de se sentirem iguais aos outros.
 
Além de havere (pelo menos haviam quando Sócrates governava) limites para a asuteridade, há também limites para a paciência perante a injustiça.