Lembro-me de em criança os pais de alguns colegas de escola serem presos por ocasião do 1.º de Maio, de ver a fotografia de Delgado com flores na loja do Gravanita, de ouvir dizer que o PCP metia o Avante debaixo da porta da PIDE, lembro-me de uma terra de gente corajosa. Dizem-me que a Luís e a São e mais algumas famílias endinheiradas ou com vontade de o ser conseguiram impor o medo, que em vez de falar as pessoas cochicham, que até se tem medo de colocar likes em mensagens políticas.
Lembro-me de uma terra cheia de atividade, de todos os espaços da margem ocupados, desde as rampas da doca ao cais do Zé Rita apinhada de traineiras e enviadas a descarregar ou a aguardar a vez. Lembro-me da terra a cheirar a atum, da azáfama das carroças carregadas com atuns enormes desembaraços com a ajuda dos guindastes do cais do Parodi. Lembro-me do “Papelitos Verdes” com o carro de mão carregado de mercadorias a caminho da Alfândega, lembro-me das ruas com gente nas noites de Inverno, das sessões de cinema no Cine Foz e no Glória, lembro-me da Tia Maria das ervilhanas, sentada no chão na esquina do Trindade Coelho e do Cabra a vender castanhas assadas junto ao cantinho do Marquês, lembro-me das provas de vela e do treino de ginástica no Clube Náutico do Guadiana.
Agora os ginastas engordaram e dedicam-se às facadinhas matreiras, as ruas estão desertas, a vila quase não revela atividade económica, as lojas andam pachorrentas à espera que apareça algum espanhol, os “peseteiros” deram lugar aos fornecedores da câmara da São, da indústria passou-se ao comércio e deste ao esquema de negócios camarários para os que caíram nas graças da São e do Luís.
Sento-me em frente à escola secundária e na hora da saída fico deprimido, em cinquenta anos parece que o nível cultural regrediu, onde se praticava desporto ao mais alto nível vejo agora muitos jovens no limite da obesidade mórbida. Onde estão os teatros, o desporto, a cultura, o orgulho, a irreverência e o amor pela liberdade de outros tempos. Como é possível que em pleno século XXI haja medo em Vila Real de Santo António? Como se pode explicar que depois de tantas décadas haja menos sensação de liberdade do que no tempo do Baía, que se vejam tantos sinais de pobreza?
Para onde foram tantos milhões de dívida da autarquia, mais de 300 milhões de euros gastos em três mandatos numa terra tão pequena. Como é que se gastou tanto dinheiro, se tenha conseguido uma medalha (não falta aqui nada?) na dívida e no atraso nos pagamentos aos fornecedores sem se deixar obra, porque o edifício da Câmara, uma pequena escola e uma morgue não explicam tão grande buraco financeiro?