Começamos a ter a sensação de que alguém anda a querer desprestigiar todos os políticos que asseguram o funcionamento da democracia, os grandes casos da justiça já não envolvem milhões e Panama Papers, os processos já não são abertos com cartas anónimas enviadas por polícias mais diligentes ou a partir de sinais de riqueza. Agora podem derrubar-se governos com o argumento de que um ministro aceitou que alguém lhe oferecesse um pastel de nata no Martinho da Arcada ou a partir de uma mera fotografia do camarote presidencial publicada no jornal A Bola.
Como é óbvio não podemos questionar a justiça por estar a fazer o que deve fazer, é para isso que tem orçamentos de milhões, que pode mandar funcionários muito bem pagos investigar ao estrangeiro, ler toda a nossa vida íntima nos e-mails ou nas escutas telefónicas. Mandam os princípios que temos de lhes agradecer, elogiar o ataque aos poderosos, dizer que devemos esperar que a justiça vá até ao fim, defender o princípio da separação de poderes.
Também é verdade que há muitos bons princípios, a começar pelo segredo de justiça, que ninguém respeita. Já se percebeu que quem quer destruir a democracia conta com a sua própria comunicação social, onde sai tudo o que interessa. Dantes, os golpitas faziam sair os tanques para a rua, agora mandam-se os jornais e nem precisam de ardinas, as notícias saem na hora. Os mesmos jornais que dão os tiros encomendados pelos golpistas fazem campanhas em defesa dos mesmos. Não há qualquer diferença entre os golpes como os do Pinochet e os atuais golpes, apenas mudaram os tanques as balas e a forma de eliminar os adversários. Dantes combatíamos os golpistas, agora temos de os elogiar e bajular, são eles os sacerdotes encarregados de proteger o altar da democracia dos abusos dos pecadores que se confessam ou que eles próprios designam como tal.
Devemos ficar calados e elogiar o papel da justiça porque atacam os grandes, ignoramos que atacar o poder nem sempre foi motivo de elogio, todos os golpes de Estado que instituíram ditaduras visaram derrubar os mais poderosos, porque, por definição os mais poderosos, são sempre os governos. Chega-se ao ridículo de sugerir que quando alguém é constituído arguido isso protege-o na investigação, o arguido pode calar-se e recorrer ao advogado. Isto é, queima-se o bom nome de alguém na praça pública, mas para os golpistas isso é um ato de defesa da vítima.
Depois, tudo fica investigação durante meses e meses, depois dos orgasmos múltiplos das sucessivas e cirúrgicas violações do segredo de justiça o processo adormece, diz-se que, tal como centenas de outros, está em investigação. Uns meses ou anos depois, numa qualquer véspera de início de férias, o processo é arquivado, em regra com o velho e cínico argumento da falta de provas. Entretanto, a vítima foi destruída, o seu nome foi para a sarjeta.
Já não é a austeridade ou a crise financeira que marca a agenda do país, os mortos dos incêndios estão esquecidos, da mulher que o MP deixou que fosse morta depois de a abandonar não se fala, das crianças que o MP permitiu que fossem traficadas pela IURD e das suas mães já nos esquecemos. A agenda deu uma cambalhota numa semana, todos esquecemos os problemas do país e os podres de uma sociedade cujas instituições são geridas em função de ambições pessoais. De um dia para o outro a agenda mediática foi entupida com processos, começou no Benfica, passou para o Bruno de Carvalho, agora andamos a investigar quem comeu pastéis de nata oferecidos no Martinho da Arcada. Tudo isto é podre e ridículo.